terça-feira, 22 de maio de 2012

saudades de al

berty, bertinho: acostumei de chamar, e ele respondendo que veio o acaso a nomear um erro Atlântico, que cada lado confundiu seu nome em outro ser, já que sou sempre mais a[ ]berto. enquanto ele-eu todo um poço calado. aquele papo fuinha de colônia, ex-, água de colônia, papinho aranha que a gente transgride, dissolvendo o atrito na língua
passando perfume no pulso acordando

escarpas, aftas, morangos ardendo

antónio no radinho :
se me apetece fico onde estou 
se alguém me impede de partir 
eu vou

entendi logo que tínhamos o mesmo elemento. sou das dunas, ele dos seixos. já sou capaz de escrever, de escrever uma biografia do meu amigo. sou um vidente. mas cecília quem me disse: ah se eu nem sei quem sou,/ como posso esperar que venha alguém gostar de mim? 

sei que nasceu em Sines
mas eu nunca fui lá
me disse pra só confiar nos traços que
passou
tanto tempo vidrado na própria sombra
que desconfia que as retinas sejam noite.

[caio, entrada de diário, 1989].




domingo, 4 de setembro de 2011

pequeno-almoço com dadá

-se ele acreditasse menos na literatura, conseguia escrever. a impressão que tenho é que ele podia dar um passo menos. é claro que dava! voltava um pouco. mas ele sempre quer estar muito à frente, dar a carne  aos pedacitos.
-mas nem tudo é para quem quer, né?, meu bem. o amor é das poucas coisas que taí pra todo mundo. a liberdade, não. maracujá que é azedo, todo mundo quer doce. me dá o açúcar e um desses definitivos?

 
- toma,
- uma das melhores iguarias da imensa doçaria portuguesa, obrigado. eu já te disse que você tem me tratado muito bem desde que estou aqui?
- já. é bom 'tares por cá. e ainda vou arranjar-te aquele caderno. não esqueci -me que gostaste da capa. e bem percebo como levam-nos por certas texturas.
- é, parece ser um caderno gostoso mesmo. ontem vi umas canetas novas. mas pra quê? tô que não escrevo faz eternidades. tem vezes parece que vem o waly salomão me dá um chupão e eu escrevo adoidado. fico bem, na medida. depois é aquela consumação, a gente não consegue desgrudar, sair da intriga. fico acabado, entonteço, tenho vontade de ligar pra clarice, mas penso que ou ela não vai atender, ou ela vai me dizer ai caio, vai ver um jardim. então não ligo. fico na minha. comigo. cansado.
- também eu, por vezes me farto. tenho ganas de ser impossível, começo a desconhecer tudo, fico intocável. foi aí que decidi vir viver ao pé do mar. queres vinho?
- ai não, minha boca tá amarga ainda. espero que não tenha sido por causa do fernando.
- é só vinho, caio.
- mas é que eu impliquei com ele por um pedaço dele ter o meu nome, entende? fiquei vidrado. como assim, o cara tem um pedaço do meu nome? ele tem um pedaço de mim.
- ouve, bebes um copo e te pões novo. fogo, o alarma disparou novamente? nomeadamente, corto a pila dele de uma vez. vá lá e arranque-o da tomada.

as caras dos gajos

nas pistas da autoestrada
estou conforme me encontro
numa nova estação.



eu gosto de ir aos poucos
mas quando não dá
eu avanço.




vivi por pouco.
desisti de ser encontrado.

lendo baudelaire na bica

- cadê o isqueiro, cara? cadê o isqueiro?
- fogo! desmaterializou. mas esse lume era de quem?
- não faço a mínima. qual era a cor dele?
- pá, se eu nem sei de quem era!
 (...) um silêncio é encontrado entre os dois, enquanto a fumaça sobe em direção à vidraça, caio diz:
- era de um vermelho maravilhoso,
- eu sei. se eu tivesse outro, eram dois destes. mas enquanto não me engolem, vão dando o que tenho à mão. faz-te um homem, vai ali embaixo e arranjas outro.
- eu fiz uma coisa tão louca com o fernando que eu até tenho vergonha de contar. não sei por onde começo. estou roxo. inacabado. um palmo a menos e não teria sido um erro. será que estou ficando inconsequente?
-faz-te um homem, vai ali embaixo e arranjas outro, pá.

terça-feira, 29 de março de 2011

a primavera, no início

O clima é perturbador, mas ao mesmo tempo fértil demais. Caio leva nos bolsos duas pedras, um topázio e um lápis lazuli, comprados de um africano sentado numa rua da Baixa. Aperta com veemência uma delas. Rápido como a língua do vento, passa um rapaz que diz lá qualquer coisa com Al berto e o brasileiro não consegue entender. Chiado, pensa. E quando o miúdo se cala e vai embora:

-Vamos voltar para lá?
-Não me apetece. Vais fantasiado do que amanhã, Caio Fernando?
-De quadrado preto.

E volta pra pensão sozinho. Não quis ir até os bares bolorentos do Cais.
Deita na cama, o lençol de fios grossos, tanta ranhura nas digitais. Abre o caderno, passa a mão na folha em branco, escreve:

"Não sei se deu pra entender. Não estou me sentindo só mas quero ficar. Depois do espetáculo quando saímos e andei pelas ruas do Chiado percebi que estava tudo entrando em mim de um jeito muito espetaculoso também. Quis esquecer. Porque quando as coisas se mexem demais a vontade que dá é voltar pra trás ou acelerar tudo o máximo possível, até atravessar todos os vestígios do impossível? Estou devastado. Quero sub-inconscientemente mexer no teu inconsciente, a vida é tão vulgar. 

Comprei duas pedrinhas pra acariciar quando a vida ficar estrondosa. Hoje fez sol. Al berto me levou pra passear no Castelo e disse: Porque as alegrias súbitas como os sofrimentos baralham no início."

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

o dia em que al berto e caio fernando abreu se encontraram

Caio olha para os tênis pretos de Al Berto. novos. eram pretos, mas a calça jeans estava puída de mês. uma gaja saiu do fundo do corredor gritando com alguém que estava encostado na sala --


-- solta a tibúrcia! -- a sombra roxa dela bonita.

eles olhavam para baixo. em meia hora a luz do pôr do sol estava cada vez mais azul nos olhos de Al Berto. Caio pensou que ele fosse virgem. ninguém viu, mas eles estavam na janela. o brasileiro não parava de falar.

-- então nessa noite dormimos todos numa cama só. o sujeito tinha um tatame no quarto, e ficava escutando Gal a noite toda, o mesmo disco, no repeat, naquela coisa. eu me sentei ao lado e li Maupassant a noite toda, e de repente começou a tocar Meu Bem, Meu Mal, é uma música da Gal

veio um garçom novinho com barba feita.

-- obrigado, traz-me a conta se faz favor. desculpa lá, Caio Fernando, foi um prazer, mas tenho que me ir. apanhar o último comboio nocturno.



Caio Fernando Abreu queria se livrar de uma fita K-7, que deu de presente ao Al Berto. no título uma caneta vermelha dizendo FUMO YOGA.

o dia em que al berto e caio fernando abreu se encontraram


-A quantidade de coisa de cocaína que tinha na exposição sobre as drogas na english medical society! - ô do caralho, né? Londres deve ter muita cocaína, tem muita cocaína, porque eu cheirei cocaína no reveillon e depois do Caribe até a Inglaterra, os caras conseguiram mapear o tráfico desde o Caribe. tem umas variações nos preços mais altos, porque se o cara traz de lancha, são pessoas que se propõem a arriscar numa lancha cheia de cocaína indo pra Inglaterra. é o país do capitalismo, é o país da cocaína. e do capitalismo. só tem pirata. só tem ladrão. é uma sincronia jungeana.
al berto assente com os olhos, vinga de lado uma pequena rebolada, tem o interior dos dedos frios, encosta no balcão o braço direito, que, mais pendido, arde feito se houvesse crescido musgo entre suas articulações. não anota mentalmente o verso, não. era só pensar uma coisa que ela estaria lacrada em si, podia recuperá-la quando - o tempo que quisesse. pensa que os homens em todos os tempos se  assassinaram. homens se matam em todas as histórias humanas. os homens continuam se matando em todos os povos. pra que tentar fingir outra coisa? é lucidamente impossível esperar que os homens parem de se matar de uma hora pra outra. então, diz pro caio:

-o sítio em que estás não importa tanto, sabes. estivesses no mar era diferente, podias ser o gajo.

caio pergunta:
-onde que é que é o banheiro aqui?
quando volta:
 -aqui é tudo amiudado, né? é esplendoroso!

dançam